Convulsão laboral na operação portuária dos EUA (Artigo Jornal Transportes & Negócios)

 Convulsão laboral na operação portuária dos EUA

A greve dos estivadores dos portos da Costa Leste dos EUA (representados pela “ILA Association”), iniciada no dia 1 de Outubro de 2024, terminou três dias depois com a total aceitação das condições exigidas pelo sindicato.

Tal como em 1977, última grande greve da estiva nos EUA, vai ficar para a história, não pelos motivos que inicialmente se previa, mas pelo facto de a Casa Branca (ainda sob a Administração Biden) estar ao lado das exigências dos sindicalistas contra os interesses dos Operadores Marítimos (que são simultaneamente Operadores Portuários).

Parece cada vez mais claro que o objetivo fundamental dos estivadores não era a questão salarial, mas sim travar a progressiva automação da atividade portuária. Os aumentos salariais conseguidos foram verdadeiramente impressionantes (62% num período de 6 anos), e ainda foi prorrogado o contrato coletivo de trabalho em vigor, enquanto são negociadas outras condições verdadeiramente surreais como travar o avanço tecnológico da operação portuária.

No âmbito das negociações, foi declarado um período transitório, até 15 de janeiro de 2025, em que apesar da retoma da normal operação portuária, seriam estabelecidas negociações sobre o modelo de desenvolvimento futuro da operação portuária nos EUA. No entanto, as negociações foram interrompidas unilateralmente pela ILA no dia 4 de dezembro, alegando que a “USMX – United States Maritime Alliance” (associação dos Operadores Portuários), procurava implementar um modelo de semi-automação dos terminais portuários, contrariamente ao que havia sido acordado em outubro, avançando com um novo pré-aviso de greve para 15 de janeiro de 2025. Os operadores portuários alegam em sua defesa que os avanços tecnológicos são determinantes para aumentar a eficiência, segurança e produtividade da operação portuária.

Pela primeira vez a nível mundial, que seja do nosso conhecimento, estamos próximos de passar para um acordo vinculativo que, de forma voluntária e consciente, vai travar o desenvolvimento tecnológico da operação portuária, numa lógica de salvaguardar os postos de trabalho dos estivadores dos EUA. Não deixa de ser curioso encontrarmos paralelo na história, quando a partir de 1956 o advento da contentorização se traduziu num decréscimo de 70% nas necessidades da mão de obra portuária.

Não deixa de ser paradigmático que os EUA, na vanguarda mundial nos sectores económicos estrategicamente mais relevantes, não tenham o mesmo peso no sector marítimo portuário, que alimenta a montante e a jusante as grandes cadeias de abastecimento globais.

No mesmo sentido, aproveitando o clima de convulsão comercial nas relações comerciais EUA/China, é igualmente aprovado um pacote de investimentos a nível portuário com o apoio governamental que prevê a substituição dos pórticos de cais e equipamento de operação portuária fabricados na China, com base na alegação que que estão equipados com câmaras de vídeo e a ser utilizados para espionagem industrial/cibernética. Uma reação de protecionismo, não fundamentado, que poderá fazer escola noutros portos a nível mundial.

A verdade é que a política marítimo-portuária dos EUA tem sido um autêntico desastre, desde que em 1999 a Sealand (fundada pelo mítico Malcolm Mclean), foi adquirida pela Maersk Line. Neste momento não temos nenhum grande operador marítimo de base americana, e mesmo os principais portos dos EUA (Los Angeles e Long Beach – Costa Oeste dos EUA) têm estado sucessivamente a perder relevância na operação portuária a nível mundial. Apesar dos EUA serem a maior economia do mundo, os seus dois principais portos posicionam-se apenas no 19.º e 20.º lugar a nível do ranking de operação portuária (no segmento da carga contentorizada). Na Costa Este dos EUA, apesar de ser a região com maior potencial de geração/atração de cargas (associada aos grandes eixos populacionais/polos de desenvolvimento tecnológico), nenhum dos portos assume especial importância a nível mundial na movimentação de carga contentorizada.

Parece claro que a políticas setoriais a nível marítimo-portuário não têm dado resultado, sendo os EUA um parceiro pouco relevante quando comparado com os grandes operadores marítimos de base europeia (MSC, Maersk, CMA-CGM, Hapag-Lloyd) ou os operadores marítimos de base asiática (COSCO, ONE, Evergreen, HMM, Yang-Ming).

O mesmo é aplicável à operação portuária em que não encontramos nenhum grande operador portuário com base nos EUA, em detrimento dos grandes operadores portuários asiáticos (PSA, China Merchants Ports, COSCO) e dos operadores portuários europeus (APM, TIL, CMA-CGM, Yilport).

Não deixa de ser paradigmático que os EUA, na vanguarda mundial nos sectores económicos estrategicamente mais relevantes, não tenham o mesmo peso no sector marítimo portuário, que alimenta a montante e a jusante as grandes cadeias de abastecimento globais.

Estabelecendo a analogia para o sistema marítimo portuário europeu, consideramos que o poder de mercado excessivo dos operadores marítimos (que são muitas vezes simultaneamente operadores portuários) deve ser regulado, atendendo a que se trata de um verdadeiro oligopólio.

Sem cair na demagogia do excessivo protecionismo dos EUA, temos de ter a perceção que o livre funcionamento do mercado não é compatível com o poder de mercado, em que os diferentes agentes económicos conseguem influenciar o preço pelo qual é transacionado um bem/serviço (uma das condições para nos aproximarmos do arquétipo de um mercado de concorrência perfeita).

Vamos aguardar o resultado das negociações laborais nos EUA. A nova greve da operação portuária para o início de 2025 é cada vez mais provável. Mais uma importante disrupção das cadeias de abastecimento se aproxima com consequências imprevisíveis. A greve terá um efeito devastador sobre a sincronização das cadeias se abastecimento, podendo causar um efeito em cadeia, que se irá traduzir em rutura os stocks nas principais unidades industriais dos EUA (especialmente na indústria do vestuário, na indústria automóvel e no abastecimento de bens perecíveis). A JP Morgan avalia os custos diários da paralisação portuária nos EUA em 5.000 milhões de USD, sendo o seu valor crescente tendo em consideração os custos de normalização dos fluxos logísticos.

Cada vez é mais percetível que a nova “normalidade” nas cadeias de abastecimento está na capacidade de dar resposta à “anormalidade” associada às disrupções da mesma.

   FERNANDO CRUZ GONÇALVES

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