FERNANDO CRUZ GONÇALVES
Professor da ENIDH
Disrupção da Cadeia de Abastecimento – Take 2
Quando se perspetivava um período de concorrência desenfreada entre os principais operadores marítimos, determinado pelo sobredimensionamento da oferta disponível, eis que uma sequência de eventos geopolíticos, estratégicos e ambientais determinou um novo fenómeno de disrupção generalizada da cadeia de abastecimento à escala internacional, com o consequente aumento das taxas de frete nos serviços de transporte marítimo.
Conflito Israelo-Palestiniano
O conflito israelo-palestiniano, está a desencadear ondas de choque, que estão a assumir proporções incontroláveis.
Os rebeldes Huthis (que de rebeldes só têm a designação depreciativa dada pela comunidade internacional, pois controlam uma parte significativa do território do Iémen e, enquanto xiitas, têm o forte apoio do regime do Irão), localizados numa posição geográfica estratégica, na confluência do Mar Vermelho / Golfo de Aden, em solidariedade com a causa palestiniana iniciaram uma série de ataques (foram contabilizados 26 até ao momento) contra os navios mercantes que têm origem / escala / destino / propriedade / registo no Estado de Israel.
O primeiro ataque ocorreu no dia 19 de novembro de 2023, ao navio RoRo “Galaxy Leader”, operado pela NYK (empresa Japonesa), mas propriedade da “Ray Shipping”, detida pelo empresário Israelita Rami Ungar (um dos homens mais ricos de Israel).
O vídeo da abordagem e sequestro do navio, após desembarque por helicóptero, evidencia a sofisticação dos meios utilizados. Os 25 elementos da tripulação, na sua maioria tripulantes Filipinos e oficiais de países da Europa de Leste (Bulgária, Ucrânia e Roménia), apesar de não terem qualquer tipo de ligação a Israel, ainda se mantêm detidos pelos rebeldes Huthis, que utilizaram o vídeo do sequestro como instrumento de propaganda internacional.
Sequestro do navio RoRo – “Galaxy Leader”. Fonte: The Guardian, Novembro, 2023
Outros ataques de menor envergadura foram efetuados a outros navios, na mesma região, com recurso a drones comerciais de baixo valor adaptados para o transporte de explosivos, “rockets artesanais” ou mesmo mísseis de curto/médio alcance.
Os alvos preferenciais são os navios com áreas de costado/superfícies vélicas extensas (obras mortas), ou seja, tradicionalmente os navios porta-contentores e os navios RoRo, mais facilmente atingidos por disparos a partir de terra. O mediatismo internacional destas operações e o elevado valor das mercadorias transportadas também potenciam o ataque a este tipo de navios.
Pelo contrário, navios com reduzida área de exposição ao fogo dos rebeldes (navios graneleiros / navios tanque) têm sido menos atacados.
O que também parece cada vez mais percetível é que todos os navios internacionais são potenciais alvos a abater e não apenas os navios com ligação ao Estado de Israel. Os ataques são cada vez mais indiscriminados.
Coligação Internacional
Em resposta aos ataques aos navios mercantes, os EUA estabeleceram uma coligação internacional formada por navios de guerra de mais de dez países ocidentais, designando a operação por “Operation Prosperity Guardian” para proteger e escoltar os mesmos na sua passagem pelo Mar Vermelho em direção ao Suez. Apesar dos bons propósitos subjacentes, Espanha, França e Itália rapidamente abandonaram a mesma por desacordo relativamente à égide da coligação (EUA vs. União Europeia vs. NATO).
Também a China recusou liminarmente o convite, tal como a Arábia Saudita e o Egipto que consideraram negativa a imagem associada à participação numa coligação criada contra elementos do Mundo Árabe.
Neste momento a Coligação está reduzida a navios dos EUA, Reino Unido, Noruega, Holanda, Grécia, Canadá e Austrália.
O Estreito de “Bab al-Mandab” tem apenas 16 milhas náuticas na sua zona mais estreita e estabelece a ligação do Mar Vermelho com o Golfo de Aden. É aqui que a maior parte dos ataques aos navios mercantes tem sido realizada.
Apesar da natureza preventiva da coligação internacional, o rápido escalar do conflito determinou uma espiral de violência de consequências imprevisíveis.
No dia 30 de dezembro de 2023, o navio porta-contentores “Maersk Hangzhou” foi primeiramente atacado por um míssil e posteriormente por 4 lanchas rápidas dos rebeldes Huthis que tentaram uma abordagem convencional pelo lado mar. O sinal de alarme, as manobras de diversão do navio, a segurança pessoal armada e a pronta intervenção dos helicópteros da Marinha dos EUA permitiram a destruição de três das quatro lanchas de assalto, resultando na morte de 10 rebeldes. A 4.ª lancha de assalto conseguiu escapar.
Perante a gravidade deste autêntico cenário de guerra, os principais operadores marítimos mundiais optaram por seguir pela Rota do Cabo em detrimento do Canal do Suez.
A viagem do Extremo Oriente para o Norte Europa via Rota do Cabo são cerca de 13 500 milhas náuticas, em comparação com as tradicionais 10 000 milhas náuticas pelo Canal do Suez (1 milha náutica = 1 852 metros). Este acréscimo de distância transforma uma viagem de 26 dias pelo Suez numa viagem de 34 dias pelo Cabo (a uma velocidade média de 16,5 nós).
Escalada do Conflito – Janeiro de 2024
Se havia alguma dúvida sobre o progressivo escalar do conflito, elas dissiparam-se nos primeiros dias de 2024 em face dos seguintes acontecimentos:
– Deslocação de uma fragata Iraniana (Alborz) para o Mar Vermelho, entendida como numa missão de apoio aos rebeldes Huthis;
– Assassinato do n.º 2 do Hamas, Saleh al-Arouri (líder operacional), no Líbano, pelas Forças Especiais Israelitas;
– Atentado bombista no cemitério de Kerman (Irão), com 95 mortos confirmados, durante as cerimónias de homenagem ao herói iraniano Qasem Soleimani, morto por um drone dirigido pelas Forças Especiais Americanas, há quatro anos (ainda no mandato do Presidente Donald Trump). O facto de se tratar de um atentado bombista, com explosivos detonados à distância, e não de meros “ataques suicidas”, tal como inicialmente noticiado, indicia um nível superior de preparação do atentado e não ações de fundamentalismo religioso;
– O comunicado da Casa Branca no dia 3 de Janeiro de 2024, em nome da Coligação Internacional, manifestando a intenção de realizar operações militares de intervenção terrestre nos territórios sobre domínio dos Huthis, para regularização do tráfego marítimo internacional.
Impactos sobre o Mercado do Transporte Marítimo
Em termos do mercado da carga contentorizada, o segmento mais dinâmico do “shipping”, envolvendo as trocas marítimas de produtos acabados e semi-acabados, as quais constituem a principal vertente, em valor, do Comércio Internacional, verifica-se um aumento generalizado e acentuado do preço dos fretes marítimos, em particular na Rota do Far East (Ásia / Europa) e também na Rota Transpacífica (Ásia / EUA). O mesmo é previsível que aconteça na Rota Transatlântica (EUA / Europa).
1) Rota do Far-East (Ásia / Europa)
A necessidade do “bypass” ao Canal do Suez por razões de segurança, decretado pelos principais operadores marítimos internacionais, traduz-se num acréscimo significativo da distância entre os grandes centros de geração/atração da carga.
Mesmo deixando as práticas de “slow-steaming” (navegação a baixa velocidade) que têm sido tradicionais no mercado como instrumento de racionalização de custos, o acréscimo da distância percorrida (pela Rota do Cabo) traduz-se num “transit-time” menos competitivo e na redução da oferta de capacidade disponível.
Mais uma vez, à semelhança do que aconteceu no período pandémico – Disrupção da cadeia de abastecimento Take 1 – 2021/2022, trata-se de uma situação de redução da oferta disponível (associada à convulsão política internacional) e não de aumento significativo da procura (que evidencia, aliás, um crescimento anémico).
A retração da oferta disponível determinou, consequentemente, o ajustamento das curvas de oferta e procura a taxas de frete mais elevadas.
2) Rota Transpacífica (Ásia / EUA Costa Oeste e Este)
Para além do “efeito de cascata” causado pelo deslocamento dos navios para rotas mais rentáveis em termos económicos, verifica-se igualmente uma redução da oferta disponível associada aos problemas no trânsito no Canal do Panamá (determinante para o abastecimento da Costa Este dos EUA, onde se encontram os principais centros de atração de carga).
A expansão do Canal do Panamá, em 2016, para além de ter sido subdimensionada em termos da capacidade máxima dos navios que a atravessam (aproximadamente 13 000 TEU), foi igualmente subdimensionada em termos do sistema de abastecimento de água que alimenta o sistema de eclusas – ver análise no âmbito do livro “Mercado do Transporte Marítimo de Carga Contentorizada”, Fernando Cruz Gonçalves (2015).
O reduzido nível de precipitação que se verificou no último ano traduziu-se na necessidade de redução do calado máximo dos navios que atravessam o Canal do Panamá, de 14,94 metros para 13,41 metros, para além de reduzir a frequência e o número diário de atravessamentos.
Na Costa Oeste, onde se encontram os dois maiores portos dos EUA (Long Beach e LA), agudizam-se os problemas com o serviço intermodal de transporte para a Costa Este/Oeste (transporte ferroviário / transporte rodoviário), associado a problemas de convulsão social/laboral.
3) Rota Transatlântica (EUA/ Europa)
Para culminar a “perfect storm”, a União Europeia, no dia 1 de Janeiro de 2024, iniciou a implementação de um sistema de licenças para poluir negociáveis aplicável ao transporte marítimo.
Para além de exigências de satisfação de indicadores de eficiência energética, os navios passaram a ser taxados em função da valorização monetária das externalidades associadas às emissões poluentes quando navegam em águas territoriais da União Europeia.
Estas exigências determinam a utilização de combustíveis mais “amigos do ambiente”, naturalmente mais caros, para reduzir as emissões de óxidos de enxofre, óxidos nitrosos e material particulado.
A resposta dos operadores marítimos foi a implementação de sobretaxas ao frete marítimo, imputando o acréscimo de custo aos carregadores, e naturalmente, aos consumidores finais das mercadorias.
Conclusões
Quando iniciámos este artigo, o interesse era puramente académico, visando analisar o impacto da convulsão política, económica e social sobre o mercado do transporte marítimo. Ao terminar o mesmo, somos de opinião que a questão do aumento generalizado dos fretes marítimos é a questão menos relevante em análise.
Na nossa opinião, vivemos a situação de maior tensão e conflitualidade a nível internacional desde o fim da Guerra Fria.
O panorama atual do mundo incentiva a criação de uma teia de interesses e objetivos estratégicos difusa e dispersa que reflete as motivações contraditórias dos diferentes intervenientes. Esta teia materializa hipocrisia e dificulta o equilíbrio entre posições extremadas.
O Irão é a grande potência regional e um aliado dos rebeldes Huthis do Iémen, a Rússia é dependente do armamento e drones fornecidos por Teerão para a guerra com a Ucrânia, o Hamas procura motivar a solidariedade do mundo Árabe para a causa Palestiniana, mas a Arábia Saudita é, simultaneamente, inimiga dos xiitas Huthis, mas financiadora de movimentos radicais islâmicos e “home base”, em paralelo com o Catar, de bases do Exército dos EUA.
O Egipto é extremamente dependente das receitas da travessia do Canal do Suez, mas naturalmente solidário com o sofrimento dos Palestinianos. A Síria e, em particular, o Líbano, apesar de não conseguirem resolver os seus problemas e convulsões internos, são, simultaneamente, a base preferencial do movimento radical islâmico Hezbollah.
Neste momento existe igualmente uma forte possibilidade de uma intervenção militar de Israel no Líbano numa lógica de ataque preventivo. Ou seja, o Estado de Israel procura sobreviver num ambiente hostil e adverso, tendo para isso a necessidade do apoio dos EUA e do Mundo Ocidental (nem que para tal tenha de recorrer a ações de terrorismo de Estado).
Tal como Donald Trump assumiu pessoalmente a ordem para liquidar o General Qasem Soleimani, é possível que Israel, implicitamente, assuma a autoria do atentado de Kerman (Irão).
Em contraposição à áurea de Donald Trump, Joe Binden, em ano de eleições Presidenciais nos EUA, face à sua baixa popularidade e imagem de líder envelhecido e pouco interveniente a nível internacional, necessita de inverter a tendência negativa das sondagens.
Após o ultimato da Casa Branca sobre os rebeldes Huthis, nos últimos três dias, acalmaram os ataques a navios mercantes no Mar Vermelho. As principais acções viraram-se para a Somália que aproveitou o aliviar da pressão internacional para voltar a realizar ações de pirataria na sua Costa (já não eram sentidas desde 2017).
Independentemente dos diferentes “players” intervenientes nestes ataques, é nossa convicção que, a curto prazo, irá verificar-se uma intervenção “musculada” da Coligação Internacional nesta região. Sinceramente, esperamos não ter razão. Era um bom sinal para a Paz no Mundo.
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