REVISTA CARGO - OPINIÃO – Fernando Cruz Gonçalves: Poder de Mercado no Transporte Marítimo de Carga Contentorizada

OPINIÃO – Cruz Gonçalves: Poder de Mercado no Transporte Marítimo de Carga Contentorizada

Terminal de Contentores de Long Beach

OPINIÃO – Cruz Gonçalves: Poder de Mercado no Transporte Marítimo de Carga Contentorizada

MARÍTIMOOPINIÃO  Comentários fechadosem OPINIÃO – Cruz Gonçalves: Poder de Mercado no Transporte Marítimo de Carga Contentorizada 393
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cruz gonçalves ENIDHVerifica-se um aumento generalizado e acentuado do preço dos fretes marítimos, em particular na Rota Transpacífica (Asia/EUA) e também na Rota do Far East (Asia/Europa). O Índice Composto da Drewrys Consultants (valores de 13 de Setembro de 2021), subiu para valores próximos dos 10.100 USD/FEU, valor três vezes superior ao período homólogo de 2020. A título de exemplo, os fretes no mercado spot de Shangai para Roterdão (Rota do Far East) passaram a assumir valores de 14.300 USD/FEU. Na Rota Transpacífica, os fretes de Shangai para New York ascendem a 15.100 USD/FEU. Mesmo na Rota Transatlântica, os fretes de Roterdão para New York assumem valores próximos dos 5.800 USD/FEU.

Perante a rentabilidade destas grandes rotas marítimas Este/Oeste, os Operadores Marítimos deslocaram oferta das Rotas Norte/Sul para dar resposta a este aumento da procura, determinando um ‘efeito de cascata’ em todas as rotas marítimas mundiais no mercado do transporte de carga contentorizada, provocando um aumento generalizado dos fretes marítimos. Em termos globais, o aumento da procura por serviços de carga contentorizada não foi particularmente significativa (aumento de 5% relativamente aos níveis de 2019, pré-COVID). Em circunstâncias normais, esse aumento de procura seria facilmente absorvido pelo excesso de oferta disponível no mercado.

O problema do aumento das taxas de frete está sim associado à assimetria no comportamento da procura, às limitações na transferência de carga na interface portuária e ao reduzido ritmo de escoamento nas acessibilidades do hinterland portuário, que se traduziram em significativos problemas de congestionamento portuário. Trata-se de uma situação de redução da oferta disponível (associada ao congestionamento portuário) e não de aumento significativo da procura. A redução da oferta disponível determinou, consequentemente, o ajustamento das curvas de oferta e procura a taxas de frete mais elevadas. Relativamente à assimetria no comportamento procura, esta é particularmente evidente nas importações dos EUA. Os portos de Los Angeles e Long Beach (os maiores portos importadores da Ásia nos EUA), tiveram picos de procura que ascenderam a 40% relativamente aos valores de 2019). O mesmo é generalizável para os países mais desenvolvidos do Norte da Europa.

Em paralelo, acentuou-se significativamente o desequilíbrio entre os fluxos de importação/exportação no triângulo Ásia/EUA e Ásia/Europa. Este desequilíbrio está associado às alterações nos padrões de consumo associadas à Pandemia de COVID-19, nos EUA e nos países Mais desenvolvidos do Norte da Europa. Confinados em casa, os consumidores dos países mais desenvolvidos, privilegiaram o consumo de bens (mobiliário, maquinaria diversa, automóveis, etc.), em detrimento da procura por serviços (turismo/ lazer).

Tratando-se de um problema de limitação de oferta disponível e não de um significativo aumento da procura, a resposta simplista é aumentar a oferta de navios através de novas encomendas em estaleiro. Mas o problema está no ritmo de transferência na interface navio/porto, pelo que um significativo aumento da oferta disponível apenas vai intensificar o congestionamento portuário e os tempos de espera dos navios. Mais navios vão chegar, mais depressa aos portos, para fundear e aguardar ainda mais tempo à espera de cais disponível. De acordo com a Formula de Wilson, o stock de segurança está directamente dependente do quadrado da variabilidade do prazo de entrega. Isto explica o efeito devastador que o congestionamento portuário e o consequente aumento variabilidade nos prazos de entrega tem sobre a sincronização das cadeias de abastecimento.

A assimetria nos fluxos de tráfego importação/exportação determinou igualmente um acumular de contentores vazios nos portos nos quais não existe carga para transportar. O reposicionamento de contentores vazios é um dos grandes problemas que o sector marítimo-portuário enfrenta e agravou-se, substancialmente, com a Pandemia do COVID 19. Na gíria do mercado é referido que a maior carga transportada a bordo dos navios porta-contentores é ar, à pressão atmosférica, e os dados estatísticos assim o demonstram (contentores vazios). A título de exemplo, acentua-se a queda dos fretes no sentido de retorno (Roterdão/Shangai), cujo valor ronda os 1.630 USD/FEU, valores cerca de oito vezes inferiores ao sentido Este/Oeste.

Poder de Mercado (Oligopólio)

Liderada pelos Carregadores, criou-se uma opinião pública desfavorável à postura no mercado dos Operadores Marítimos. A resposta parece simples. Os Operadores Marítimos estão a ter rentabilidades nunca antes atingidas no shipping. São eles que querem perpetuar a situação para potenciarem ainda mais a sua posição privilegiada.

Na realidade, o mercado do transporte marítimo de carga contentorizada tornou-se um verdadeiro oligopólio. Apesar de existirem 350 Operadores Marítimos, o índice C4 (somatório do market share dos 4 maiores players) representa 57,8% do mercado. Se alargarmos a análise para o índice C10 (somatório do market share dos 10 maiores operadores marítimos) esse valor ascende a 84,6%. Esse facto ainda é agravado pelo facto dos maiores operadores marítimos estarem integrados no seio de Alianças Estratégicas, com vessel share agreements (partilha de navios) e slot share agreements (partilha de espaços de carga). A Maersk está com a MSC no seio da 2M, a CMA CGM está com a COSCO e a Evergreen no seio da Ocean Alliance, e a Hapag Lloyd, a ONE, a Yang Ming e a HMM estão associadas no seio da The Alliance. Por outras palavras, existem acordos operacionais entre todos os 10 maiores operadores marítimos mundiais.

Não temos dúvidas que existe ‘poder de mercado’, ou seja capacidade de influenciar o preço pelo qual é transaccionado um bem/serviço. Não concordamos que exista «abuso de posição dominante», prática considerada ilegal pelas Autoridades Reguladoras do Mercado. Seria mais fácil alinhar pelo discurso do «abuso de posição dominante». É mais populista e a opinião pública está ávida por encontrar culpados para a crise, sem precedentes no mercado do transporte marítimo, decorrente do aumento generalizado das taxas de frete.

Quando todos os operadores marítimos, durante 65 anos (data do advento da contentorização), diariamente lutaram para melhorar a qualidade do serviço prestado e a fiabilidade dos seus prazos de entrega, é uma incongruência que a sua rentabilidade seja agora resultado do caos que se vive a nível do sector marítimo-portuário, com total incapacidade de cumprir prazos de entrega e assegurar a fiabilidade do serviço. É como um bom profissional durante toda a vida, apenas conseguir auferir rendimentos elevados quando desleixa as suas obrigações profissionais e passa a prestar um serviço de péssima qualidade. É um non sense. O ser humano, por natureza, gosta de prestar um serviço de qualidade a um preço competitivo. As organizações não são diferentes do comportamento humano.

Cenários Futuros

Um político pelo qual temos particular admiração, Winston Churchill, afirmava que apesar de todos os problemas e injustiças sociais a democracia era o menos mau de todos os sistemas políticos. Apesar de estarmos a vivenciar, no mercado do transporte marítimo de carga contentorizada, falhas dos mecanismos de mercado, também somos da opinião que o livre funcionamento do mercado é a menos má das soluções.

Com todos os seus problemas e injustiças sociais. Temos perfeita consciência que a concentração do mercado, as alianças estratégicas, o aumento da dimensão dos navios, permitiram minimizar os custos unitários de transporte e foram os grandes responsáveis pela globalização da economia, ao conseguirem desvalorizar o factor distância. Consideramos que que a intervenção excessiva das Autoridades Reguladoras do Mercado, poderá por em causa os ganhos de eficiência conseguidos a partir de 1996 (com o advento das Alianças Estratégicas), determinando, eventualmente, um agravamento dos custos de produção que se poderá traduzir num aumento dos preços de venda dos produtos aos consumidores finais das mercadorias. Por vezes o remédio é pior do que a doença.

Não é previsível num futuro próximo uma alteração significativa nas condições do mercado do transporte marítimo de carga contentorizada. A proximidade de períodos de intensa procura, nomeadamente o dia de Acção de Graças, o período do Natal e do Ano Novo Chinês, perspectivam a possibilidade da continuação das rupturas nas tradicionais cadeias de abastecimento. O consumo típico destas alturas festivas, será ainda potenciado pelo significativo aumento da liquidez das famílias (o nível de poupança nunca foi tão elevado), que se irá traduzir num aumento da procura por serviços de transporte marítimo de carga contentorizada.

Tal como anteriormente referido, ninguém está satisfeito com as condições caóticas que se vivem no mercado. Os comunicados da CMA-CGM e da Hapag-Lloyd, datados de 13 Setembro, visando impor limites aos aumentos dos fretes marítimos até ao dia 1 de Fevereiro de 2022, são disso um bom exemplo. Não temos dúvidas que serão seguidos pelos restantes principais operadores marítimos. Os problemas são transversais a toda a cadeia de abastecimento. O mercado tenderá a ajustar-se por si próprio.

Fernando Cruz Gonçalves

Especialista em Administração e Gestão – Economia Marítima-Portuária (ENIDH/ Escola Naval/ ISCIA), Mestre em Maritime Management and Transport Economics (ITMMA – Universidade Antuérpia), MBA em Gestão Logística (IST/ISCTE/EGP), Licenciado em Gestão e Tecnologias Marítimas (ENIDH), Licenciado em Administração e Gestão Marítima (ENIDH), Bacharel em Pilotagem (ENIDH).
Oficial da Marinha Mercante, é/foi Coordenador da licenciatura em Gestão Portuária, Coordenador da licenciatura em Gestão de Transportes e Logística e Coordenador do Mestrado em Gestão Portuária da ENIDH. Professor do Departamento de Transportes e Logística.
Consultor em Transportes, Portos e Logística em diversos projectos e estudos realizados no âmbito empresarial e de programas co-financiados pela Comissão Europeia.

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