Canal do Suez bloqueado há 4 dias (Jornal Transportes & Negócios)

 

Canal do Suez bloqueado há 4 dias

Continua encalhado, há exactamente 96 horas, o navio “Ever Given” de 20 388 TEU de capacidade, do operador marítimo Evergreen, obstruindo totalmente a passagem do Canal do Suez.

A mais importante e dinâmica Rota Marítima a nível mundial – “Rota do Far-East” – que liga o Extremo Oriente à Europa encontra-se parada. O volume de tráfego contentorizado nesta rota Marítima ascende a 23 milhões de TEU anuais, 16,1 milhões dos quais no sentido “Westbound” (Ásia/Europa) e 6,9 milhões de TEU no sentido “Eastbound” (Europa/Ásia).

Tabela 1- Grandes Rotas Marítimas (E/W) – Carga Contentorizada. Fonte: Maritime Review 2020 – UNCTAD (Nações Unidas)

A “Lloyds List” avalia em 7,9 mil milhões o custo diário do bloqueio do Canal do Suez, mas os cálculos apenas consideram os custos de depreciação financeira das mercadorias, não considerando o impacto sobre a sincronização dos sistemas logísticos a montante e jusante do Canal do Suez. Lembramos que o problema determinante em termos logísticos não é o “transit-time” (senão os navios não estariam maioritariamente a navegar em “slow steaming”) mas a variabilidade do prazo de entrega.

Este facto é potenciado pelo momento que estamos a viver no shipping, em que se acentuam os desequilíbrios a nível do reposicionamento de contentores vazios que, face à sua escassez, têm sido colocados nas rotas marítimas mais importantes do transporte marítimo (tráfegos Este/Oeste), em detrimento das rotas secundárias (rotas Norte/Sul e tráfegos intrarregionais).

Este problema, maioritariamente afecto à pandemia que se vive a nível mundial, estava finalmente a ser ultrapassado e este acidente veio perturbar, novamente, a dinâmica de estabilização do mercado de fretes. Após os picos de mercado de Janeiro e Fevereiro de 2021, em que os fretes marítimos aumentaram entre 3 a 5 vezes relativamente aos valores normais do mercado, estava-se a verificar em Março uma natural tendência de normalização do mercado.

Trata-se de uma questão algo marginal relativamente ao encalhe do “Ever Given”, mas esperamos que os Carregadores, que foram particularmente críticos relativamente aos Operadores Marítimos quando as taxas de frete “dispararam” em função do desequilíbrio no posicionamento dos contentores à escala global, sejam agora mais solidários na resolução do problema do Suez. Irá, igualmente, ficar vincada a relevância do transporte marítimo no abastecimento de cadeias macrologísticas globais.

Outra questão que se coloca é quem vai assumir os custos decorrentes do bloqueio do Suez? Em termos de seguros marítimos temos a considerar o seguros de casco e máquinas – “hull&machinery” – protegendo os riscos do operador marítimo/armador, os seguros associados aos riscos de danos na carga – “cargo insurance” – perspectivados na lógica do carregador e os seguros de P&I Club (mútuas de armadores), mais abrangentes, que cobrem os danos materiais/ambientais sobre terceiros.

Note-se que nenhuma Seguradora/P&I Club teria capacidade financeira para assumir os custos de um acidente desta magnitude. A boa notícia é que apesar de uma Seguradora/P&I Club se assumir como “testa de ferro” da operação, no mercado segurador é feito resseguro por dezenas de outras seguradoras que acabam por partilhar o risco solidariamente.

Acreditamos que seja possível resgatar, com sucesso, o navio “Ever Given” na noite de domingo para segunda-feira (dias 27/28 de Março). A altura de maré será significativa nessa data e há expectativas que os especialistas da “Smit Salvage” (lendária empresa Holandesa de “Search and Rescue”) consigam concretizar o desencalhe do navio.

Salienta-se que as imagens recebidas da operação de resgate do navio não credibilizam a Autoridade do Canal do Suez. Reboques obsoletos e com reduzida força de tracção (alguns dos quais inoperacionais), dragas de sucção antigas e utilização de retroescavadoras – apenas uma? – a partir de terra não perspectivam resultados positivos sem intervenção internacional. A eventual necessidade de aliviar carga, fazer o reposicionamento de contentores a bordo e a remoção de combustível / aguada / lastro) tornam a operação de resgate mais demorada e difícil de realizar.

Figura 2 – Retroescavadora operando junto ao Bolbo do navio “Ever Given” encalhado no Canal do Suez (24.03.2021)

Apesar das notícias iniciais apontarem para uma falha de energia a bordo, representantes do operador marítimo Evergreen vieram clarificar que se tratou de um “golpe de vento” associado a uma tempestade de areia que incidiu sobre o costado do navio e determinou o seu atravessamento longitudinal e encalhe no Canal.

Embora este tipo de acidentes tenha sempre associado uma série de incidentes em série, que associados culminam com um grande acidente, não temos dúvidas de que este encalhe vai relançar a discussão sobre o aumento da dimensão dos navios.

O aumento da dimensão dos navios tem sido assente no crescimento da boca (largura) e não do comprimento “fora-a-fora”. O mesmo é aplicável ao aumento das “obras mortas” (área do navio acima da linha de água), tornando-se a área do costado exposta ao vento muito significativa (superfície vélica). É igualmente o caso dos grandes navios RoRo para transporte de viaturas. Apesar de no passado terem sido apontados como o futuro do transporte marítimo face à velocidade e rapidez da operação de carga/descarga (a carga entra e sai sobre rodados), tratam-se de navios muito difíceis de manobrar e com problemas de segurança na navegação.

Uma terceira possibilidade, a mais provável na nossa opinião, é o encalhe estar associado ao chamado “efeito de squat” – efeito de navegação em águas pouco profundas. O navio ao deslocar-se em águas pouco profundas é direcionado para os bordos, fazendo que haja uma queda de pressão e fazendo o mesmo “afundar” verticalmente. A intensidade do “efeito de squat” é directamente igual à velocidade do navio, bem como inversamente proporcional à profundidade e largura do Canal do Suez.

Embora este tipo de acidentes tenha sempre associado uma série de incidentes em série, que associados culminam com um grande acidente, não temos dúvidas de que este encalhe vai relançar a discussão sobre o aumento da dimensão dos navios.

Figura 3 – Capacidade do Navio “Ever Given” – Evergreen – 20.388 TEU

As imagens do navio são elucidativas. O formato em “U Shapped”, e não em “V Shapped” como era tradicional no passado, para aumentar a capacidade de carga, o elevado número de contentores empilhados acima do nível do convés, a elevada área exposta acima da linha de água, o avanço da ponte para vante para evitar os problemas de visibilidade para a proa, o recuo da máquina para ré. Não estará o navio “Ever Given” sobredimensionado para as dimensões do Canal?

Não deixa de ser curioso que durante os diferentes conflitos israelo-árabes (1956/1973), foi necessário provocar deliberadamente o afundamento de 15 navios para tornar inoperável à navegação o Canal do Suez. Em 23 de Março de 2021, apenas um grande navio porta-contentores, o “Ever Given”, foi suficiente para alcançar, involuntariamente, esse objectivo.

Outra lição da história é o Case Study da Evergreen (ver “Mercado do Transporte Marítimo de Carga Contentorizada / Fernando Cruz Gonçalves / Chiado Editora), no qual fica evidente que o Fundador da Evergreen, Chang Yung Fa (entretanto falecido), sempre seguiu uma estratégia conservadora no mercado, não investindo na gigantização do transporte marítimo. A Evergreen sempre se assumiu como um “outsider” em termos estratégicos no mercado do transporte marítimo. Ainda em 2009 Chang Fa afirmava que não tinha intenção de adquirir navios de dimensão superior a 9.000 TEU. Acreditava que se tinha atingido a zona limite de redução de custos unitários de transporte associados à economia de escala e que estávamos próximos de entrar numa dimensão associada a deseconomias de escala.

Os seus sucessores não concordaram com a sua visão. Em 2014, depois de uma forte convulsão interna no seio da família Yung Fa (associada ao falecimento do seu líder histórico), iniciaram uma ambiciosa estratégia de renovação da frota, assente em navios de grande dimensão. O resultado está à vista. Se calhar Chang Yung Fa tinha razão.

Nota: Artigo escrito a 27.Março.2021

 

FERNANDO CRUZ GONÇALVES

 

Professor da ENIDH

 

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